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Principais características da execução barroca


1 - Técnica e Elegância – Os pilares da arte barroca

O deslumbre da técnica foi talvez um dos pontos mais presentes da vida do homem barroco. A ciência, a matemática, a física alcançavam um novo patamar. A vitória do ser humano sobre a natureza alcançava um nível nunca visto na história da humanidade. Não por acaso enquanto Isaac Newton formulava a lei da gravidade, a música sistematizava a tonalidade. Os jardins barrocos são o exemplo de que o homem, com conhecimento e técnica, conseguia dominar a natureza. Fazer crescer árvores da forma que bem quisesse, dominar rios, criar cascatas ao seu bel prazer. A técnica do fazer estava presente em tudo.


Basta olhar um quadro barroco, uma arquitetura barroca, uma decoração barroca, uma vestimenta barroca.

A primeira coisa que nos chama atenção não é apenas a beleza em si. É, intrinsicamente, como aquela beleza foi feita. É o seu modus facere ou o modo de se fazer, de se construir aquela arte. É sobre até onde a técnica pode criar beleza. E mais ainda, sobre elegância: a técnica de criar beleza além da técnica, sem demonstrar suas dificuldades.


Em música, o que podemos entender por técnica é a capacidade de realização de passagens difíceis, na velocidade proposta, na afinação desejada, na clareza exigida, com a dicção (tanto vocal quanto instrumental) necessária.


E a elegância é a coroação dessa técnica. É fazer com que toda a técnica seja utilizada em um trecho de dificuldade sem que se deixe o espectador perceber. A elegância é o além da técnica. É conseguir ir além de toda dificuldade e tratar aquele material como um objeto fluido, maleável. A elegância é, apesar de toda a dificuldade técnica, demonstrar facilidade e domínio.


2 - Parcimônia nos Vibratos

O vibrato, como é empregado hoje em dia nas orquestras modernas, é supervalorizado e superutilizado. Essa utilização desmedida é uma prática bastante recente, comum somente a partir do século XX. Nem no período romântico, como seria de se esperar, o vibrato era tão utilizado. Para essa constatação basta ouvir as gravações de Joseph Joachim disponíveis no youtube. Joseph Joachim era considerado o violinista preferido de Brahms, um dos maiores representantes do romantismo.


Isso não significa que o vibrato não existia em períodos anteriores. O vibrato sempre existiu, porém de modo muito mais comedido. O vibrato era utilizado como um ornamento. Em local bastante específico e premeditado. Talvez uma boa comparação desse emprego seria com o trinado. O trinado tem locais bastante determinados para sua utilização, inclusive marcados previamente com sinais gráficos. Imagine se acaso o triando fosse utilizado indiscriminadamente em todas as notas. Pois é exatamente isso que acontece atualmente com o vibrato e é isso que devemos evitar.


O vibrato não deve ser usado exageradamente, como um tique nervoso. Como dizia Ricardo Kanji,


o vibrato só deve ser utilizado quando você já abriu mão de todos os recursos para fazer uma nota bonita.

Desse modo, já podemos concluir que o vibrato pode ser usado de maneira discreta, por exemplo, ao final de uma nota longa. Ainda assim o vibrato deve ser utilizado estritamente de modo progressivo, iniciando lentamente, acelerando gradualmente e finalizando com uma breve retração.


Gostaria de reiterar que um músico moderno não “perde” o vibrato quando executa música barroca. Ele ganha a consciência da utilização do vibrato. E essa consciência é sempre bem-vinda, inclusive em execuções modernas.


Portanto, a prática de manter uma parcimônia nos vibratos, durante uma execução barroca, é sempre uma grande vantagem. Vantagem para o resultado sonoro da execução histórica e vantagem na conscientização da utilização do vibrato em qualquer situação.

3 - O Arco Fora da Corda

O domínio “barroco” do arco talvez seja a característica da execução história de mais difícil compreensão para um instrumentista moderno de cordas friccionadas. Ainda mais difícil do que controlar vibratos. Na escola moderna, o aluno, desde a primeira aula, é instruído a manter sempre o arco na corda, a fazer as mudanças de arcada de modo mais imperceptível possível, a nunca deixas o arco longe do instrumento, a nunca permitir o silêncio entre as notas.


Essa insistência constante dos professores modernos faz com que o instrumentista atual nunca tenha coragem de permitir que seu arco salte.

Mas o movimento do arco barroco é bem diferente.


O arco barroco salta da corda. O arco barroco dá oportunidade ao silêncio. O arco barroco abusa de retomadas. O arco barroco liberta a nota para que ela vibre solta no espaço.

4 - Silêncio Entre Notas

O silêncio entre notas, na execução barroca, vai além de uma característica estilística. Esse silêncio é absolutamente necessário. A música barroca é uma música construída em cima de um excesso de notas. Esse excesso não se encontra apenas em uma frase, através dos recorrentes grupos de quatro semicolcheias, por exemplo. Ele está presente também na larga utilização do contraponto, elemento formador da música barroca.


Junte-se a esse abuso de notas, o fato de que a música barroca era executada quase sempre em construções com grande reverberação sonora: igrejas, salas de música e salões de festas.


Era, pois, vital, que uma execução fosse realizada respeitando-se ao máximo os silêncios entre as notas, caso contrário a música se converteria numa massa disforme de sons amontoados.

5 - Inégalitè

O inégalité pode ser traduzido, de maneira bem livre, como desigualdade. Na música barroca se traduz pela prática de se executar notas de um modo desigual. É bastante comum na música francesa e em algumas interpretações de suítes alemãs ou inglesas compostas sob influência francesa.


De um modo geral o inégalité deve ser realizado em colcheias, executando a primeira colcheia, da cabeça do tempo, com uma duração maior e a segunda colcheia, da metade do tempo, com uma duração menor.


A duração de cada tempo executado não é fixa. Em movimentos mais lentos, por exemplo, essa variação pode ser realizada quase como uma quiáltera, de modo mais fluido, onde a duração da primeira colcheia escrita corresponde à duração de duas colcheias quialteradas e a duração da segunda colcheia corresponde à duração da terceira colcheia quialterada.

Em movimentos mais enfáticos, como a primeira seção de uma abertura francesa, deve-se executar as colcheias como se fossem a primeira colcheia pontuada e a segunda uma semi-colcheia ou até mais exagerado do que isso.


Em movimentos rápidos essa regra pode não ser cumprida pela própria impossibilidade de se executar um inegal dependendo do andamento da peça. Porém o Inégalité não necessariamente se restringe à duas colcheias. Ele também pode (e deve) ser realizado em grupos de quatro semicolcheias, onde se executa a primeira semi-colcheia com a duração um pouco maior do que as demais.

6 - Envelope da Nota

O envelope da nota barroca, seu perfil de dinâmica, deve ser executado com grande empenho e cuidado.


A nota barroca deve ter o envelope da nota como uma bolha. A nota deve começar mais leve, mais piano, crescer no decorrer do tempo e terminar sempre morrendo. Não estamos falando aqui de mesa di você, que é um efeito mais enfático e pontual.


O envelope da nota barroca deve ser observado na maior parte das notas possível, quer sejam elas curtas ou longas.


Trata-se de fazer com que esse perfil da dinâmica seja praticamente a característica normal de todas as notas. Lógico que em trechos rápidos, por exemplo, não é possível que esse perfil aconteça. Mas de modo geral, o instrumentista deve ter sempre em mente esse envelope.

7 - Mesa di Voce

Mesa di Voce é quando, em uma nota longa, se começa bastante piano, cresce no desenvolver do tempo e termina tirando um pouco do volume.

O Mesa di Voce já foi mais detalhado aqui em um capítulo especialmente dedicado à ele.


O Mesa di Voce deve ser utilizado sempre que possível, tomando o cuidado de em todas as vezes terminar a nota com cuidado, nunca em seu ápice de dinâmica.


Existem diferentes tipos de Mesa di Voce, podendo variar quanto à amplitude de sua dinâmica e ao momento do pico de intensidade da nota, que pode ser mais para o início, no meio ou mais para o final.


Uma boa situação é quando se consegue trocar o que seria uma utilização genérica do vibrato por um Mesa di Voce.

8 - Sonoridade

No período barroco se considerava como um bom resultado sonoro o casamento perfeito entre timbres de diferentes instrumentos.


Tempos depois é que as diferenças de timbre passaram a ser valorizada e os instrumentos foram sendo agrupados em “famílias” e cada um foi adquirindo timbres bem característicos.


No barroco, quanto mais os diferentes timbres se fundissem, mas bem considerado era o resultado. O objetivo era criar uma resultante sonora onde não se podia distinguir um timbre de outro e que a soma dos timbres se assemelhasse o máximo possível.


Portanto, o instrumentista deve fazer com que o timbre (e o toque em geral, intensidade, fraseado, envelope, dinâmica) de seu instrumento se funda por completo com o som dos demais instrumentos, seja da mesma família ou não.

9 - Fraseado

O fraseado barroco deve ser realizado com clareza e cuidado e com suas particularidades bastante explícitas.


Todo final de frase deve ser concluído com uma nota piano e diminuindo. Como diria o personagem de Marim Marais no excelente filme “Todas as Manhãs do Mundo”: toda nota deve acabar morrendo.


Já no início da frase, toda nota em anacruse deve ser executada de modo menos intenso que a nota de tempo forte, fazendo com que a frase “caminhe” em direção ao tempo forte.


Inegal, cadências, emíolas, acentuações deslocadas, fraseados internos, retomadas de arco, Mesa di Voce e respirações devem ser “descobertos” em meio à anotação musical e não devem ser esquecidas no momento da execução, sendo explicitadas de modo a soarem de forma bem clara para o público ouvinte.

10 - Ornamentos

É característica geral do barroco o excesso de ornamentos. Podemos ver esse excesso nas perucas, nos acabamentos das roupas, nos detalhes arquitetônicos, nos móveis, nos arroubos literários e, logicamente, na música.

Porém, uma diferença que vemos na música, é que esses ornamentos, na maioria das vezes, não estão escritos.


Cabe aos músicos a execução desses ornamentos.

No caso de grupos menores, esses ornamentos podem ser estudados, treinados ou realizados de improviso.


No caso de uma orquestra, como existem vários instrumentos fazendo a mesma frase, é preciso que esses ornamentos sejam previamente combinados com os demais instrumentistas do naipe. Essa combinação, porém, não deve ser um empecilho para que os ornamentos não sejam feitos. Ornamentos são sempre bem vindos e trinados, tiratas, mordentes, grupetos devem ser utilizados com generosidade, principalmente no caso de trechos em ritornelos.


É da constituição física que instrumentos mais agudos, por sua velocidade de resposta sonora, devam utilizar mais ornamentos e instrumentos mais graves devam utilizar esse recurso raramente. Quando mais agudo, mais ornamento, quanto mais grave, menos ornamento.


A utilização de ornamentos também é um recurso para ajudar na afinação e na acentuação de notas.

11 - Acentuações

As acentuações barrocas são conseguidas de modo bastante diferente das acentuações modernas. As acentuações modernas são, em sua grande maioria, realizadas quase que exclusivamente colocando-se um volume maior de som na nota. Empregando força no arco, no caso das cordas friccionadas ou pressão de ar no caso dos sopros.


Porém, a acentuação barroca é realizada principalmente fazendo com que a nota em questão tenha uma duração maior do que as demais. Essa duração pode ser apenas para preencher todo o tempo devido da nota ou uma duração que ultrapasse um pouco os limites do tempo dela.


Para um melhor efeito, é necessário então que se crie um contraste da nota acentuada com as notas vizinhas. Para isso, é preciso também que o instrumentista reduza um pouco o tempo das notas vizinhas, principalmente da anterior. Logicamente o fator força também é um pouco empregado, mas com muito mais moderação.


Podemos supor que esse modo de acentuar venha de duas características: a primeira é o fato de cravos e órgão não possuírem dinâmica, sendo essa diferença de duração a única forma de valorizar algumas notas. A segunda é o fato de a sociedade barroca ser extremamente zelosa com a etiqueta, fazendo com que a força para se acentuar uma nota soasse como uma deselegância.


Se considerarmos que a força é um vetor vertical e a duração um vetor horizontal, podemos entender que a interpretação da música barroca é muito mais horizontal e a interpretação moderna é muito mais vertical. Qualquer semelhança com a verticalização de núcleos urbanos através da história pode não ser uma mera coincidência.


No caso dos sopros, além da duração, o ataque de língua também é decisivo, sendo o TU recomendado para atacar notas de tempos fortes, por exemplo: as primeiras semicolcheias de grupetos de quatro semicolcheias, e o RU utilizado para as notas fracas.

12 - Velocidade do Arco

Na interpretação barroca, a velocidade com que o arco percorre a corda não deve ser igual, do início ao fim.

Sempre que possível, dependendo da duração da nota, o arco barroco deve iniciar seu percurso de maneira mais lenta, acelerar no meio da nota e desacelerar ao final.

Essa prática ajuda no envelope da nota, valorizando de forma harmônica o perfil mais orgânico, mais redondo, que uma nota deve ter sem que com isso precise utilizar apenas força.

O envelope da nota e corretamente marcado mantendo-se ainda o caráter horizontal da interpretação barroca.


 
 
 

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